30 de set. de 2025
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Toda ruptura histórica nasce da necessidade de dar nome a algo que já existe, mas que ainda não foi reconhecido. Quando os gregos da antiguidade abandonaram as explicações míticas para buscar respostas racionais, não inventaram o mundo: apenas olharam para ele com novas lentes. Tales, Anaximandro, Anaxímenes — cada um deles não criou a natureza, mas a interpretou de forma inédita. Foi nesse movimento que a razão se tornou o fio condutor da cultura ocidental.
Mais tarde, no início do século XX, quando empresas gigantescas começaram a se organizar em torno da lógica industrial, também se percebeu que os trabalhadores não eram apenas braços mecânicos. Eles eram sujeitos, com necessidades, desejos e habilidades que não podiam ser reduzidos ao barulho das engrenagens. Nasceu, assim, o conceito de Recursos Humanos (RH), formalizando algo que já existia, mas que precisava de nome e método para ser gerido.
Hoje, vivemos o mesmo momento. Sistemas digitais autônomos já estão entre nós: chatbots que atendem clientes, robôs de software que conciliam contas, algoritmos que decidem preços. Eles existem, trabalham, aprendem, erram e acertam. Mas ainda não receberam um nome que lhes dê identidade organizacional. É nesse ponto que surge a necessidade dos Recursos Não Humanos (RNH).
O nascimento dos colaboradores digitais
Dizer que uma empresa possui tecnologia não é novidade. Desde que computadores invadiram escritórios e fábricas, tornou-se impossível separar gestão e tecnologia. Mas há uma diferença crucial entre ter computadores e ter colaboradores digitais.
O computador sempre foi ferramenta. O RNH, por outro lado, é ator. Ele não apenas recebe ordens: executa processos de ponta a ponta, analisa dados, aprende com padrões, toma decisões e até se adapta a mudanças de contexto.
Pensemos em um analista humano de atendimento. Ele recebe uma solicitação, busca informações, elabora uma resposta, registra o caso e o encerra. Hoje, um RNH pode fazer exatamente isso: recebe a mensagem, acessa bases de dados, gera resposta com base em inteligência artificial, atualiza o sistema e conclui o atendimento. Não é apenas ferramenta: é trabalho completo.
É nesse sentido que falar em Recursos Não Humanos se torna urgente, Esse termo, difundido e popularizado por Paulo Bonfá, founder da Agio, chega para nomear e organizar o fator digital autônomo, sobretudo, após a explosão da inteligência artificial.
A diferença entre RH e RNH
Comparar humanos e não humanos é inevitável, mas não se trata de oposição. O humano traz criatividade, empatia, capacidade de lidar com ambiguidades. O não humano oferece disponibilidade contínua, escalabilidade e lógica matemática.
Enquanto um analista financeiro precisa de tempo e energia limitados, um RNH pode conciliar milhares de transações em segundos, sem pausa, sem distração, sem férias. Por outro lado, quando surge uma exceção inédita, uma situação fora do padrão, é o humano que entra com julgamento, interpretação e sensibilidade cultural.
O futuro, portanto, não é humano contra não humano, mas humano e não humano, lado a lado, no mesmo organograma. A empresa será híbrida, como uma nova pólis em que convivem cidadãos biológicos e cidadãos digitais.
O novo departamento: a gestão híbrida
Na Grécia Antiga, a ágora era o lugar onde cidadãos discutiam o futuro da cidade. Hoje, a ágora das empresas se manifesta no organograma. É nele que se decide quem faz o quê, quem responde por quem, como se distribuem responsabilidades.
O que antes era ocupado apenas por nomes de pessoas, agora passa a incluir também os nomes de sistemas. “Temos 50 colaboradores humanos e 120 RNH atuando em áreas como atendimento, financeiro e logística.” Essa frase, que ainda soa futurista, será trivial em poucos anos.
O que muda é a consciência. Ao nomear, criamos responsabilidade. Assim como um gestor de RH responde por sua equipe humana, um gestor de RNH responderá por sua equipe digital. Métricas, treinamentos, avaliações e até desligamentos farão parte da rotina.
Dilemas e responsabilidades
Entretanto, nomear é também assumir dilemas. Quem responde quando um RNH comete um erro? Se um algoritmo de crédito nega financiamento a alguém injustamente, de quem é a culpa? Do programador, do gestor, do próprio RNH?
Essas questões lembram as críticas de Sócrates aos sofistas. Enquanto estes se contentavam com a persuasão, Sócrates exigia a busca pela verdade. Da mesma forma, não podemos nos contentar com a aparência de inteligência dos sistemas digitais. É preciso garantir que decisões sejam auditáveis, transparentes e justas.
Há, ainda, o desafio cultural. Colaboradores humanos podem ver nos RNH uma ameaça. O medo da substituição pode corroer a confiança. Nesse ponto, cabe aos líderes reforçar que humanos e não humanos não são excludentes, mas complementares.
Benefícios estratégicos
Apesar dos dilemas, os benefícios são inegáveis. Empresas que adotam RNH obtêm ganhos de:
Escalabilidade: um único RNH pode realizar o trabalho de centenas de pessoas em processos repetitivos.
Disponibilidade: operam sem pausa, 24 horas por dia, 7 dias por semana.
Eficiência: reduzem custos operacionais e aumentam precisão.
Integração: conectam áreas diferentes via APIs, atuando de forma transversal.
Medição: permitem métricas objetivas e comparáveis, criando indicadores próprios de performance.
Esses benefícios transformam o RNH em recurso estratégico, não apenas operacional.
O futuro institucional dos RNH
Se o RH se consolidou como departamento, com metodologias próprias, o RNH seguirá caminho semelhante. Podemos imaginar:
Onboarding: integração formal de um novo RNH, com configuração, testes e adaptação.
Treinamento: atualização de modelos de IA, refinamento de automações.
Avaliação de desempenho: métricas de uptime, acurácia, ROI.
Desligamento: substituição de RNH obsoletos ou ineficientes.
Tudo isso exigirá novos papéis: talvez um Chief Non-Human Resources Officer (CNHRO), responsável por gerir a força de trabalho digital.
Por isso é preciso abandonar a ilusão de que máquinas substituirão totalmente os homens, ou de que os homens permanecerão intocados pela máquina. O futuro é híbrido. A pólis empresarial terá cidadãos biológicos e cidadãos digitais.
Assim como Sócrates diferenciava opinião de conhecimento, precisamos diferenciar simples automação de verdadeiro recurso organizacional. O RNH não é um script, nem um chatbot isolado. É a união de dados, software, automação e inteligência, atuando como colaborador autônomo.
Portanto, se o RH foi a base da administração moderna, os RNH são a essência da administração contemporânea.




